quinta-feira, 28 de junho de 2012

ESPAÇO COLETIVO - Maria Emília Bottini


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QUANTO TEMPO DURA UMA DOR?
Maria Emília Bottini

Algumas histórias, por vezes, simplesmente dilaceram eternamente a alma de quem as vive. Embora a vida siga seu curso, a alma segue em feridas abertas as quais de quando em vez sangram para dizer que ainda estão lá. Algumas dores demoram a passar, de tempos em tempos, a exemplo da ressaca marinha, voltam com força redobrada e por vezes nunca cessam.

Estava passeando pelo interior de Goiás quando passei por um trevo e avistei que em seu centro havia três estátuas de anjos. Ao chegar ao destino indaguei sobre o que aquilo representava. Não esperava pelas histórias que seguiriam. Imaginei tratar-se de coisa de religião, no entanto, era bem mais que isso, muito mais complexo e cruel.

Há dezoito anos, houve na comunidade três mortes de crianças, todas morreram no mesmo ano. Um menino morreu afogado em uma lagoa de uma fazenda quando a escola fazia um passeio: uma menina morreu atropelada no asfalto e o motorista, não tão humano, fugiu sem prestar socorro: e a outra menina, bem, essa requer detalhes de sua morte dolorida e difícil de aceitar.

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As estátuas dos três anjos representavam as crianças/vítimas. Era uma espécie de homenagem visível e pungente da memória da dor e das perdas para as quais quase nunca estamos preparados.

A terceira estátua foi atribuída a uma menina que com oito anos de idade fora vítima de um rapaz de vinte e seis anos que apresentava disfunções sexuais. Após muitas investidas com mulheres de sexo fácil sem resultado e outras tentativas frustradas em provar sua virilidade. No desespero para resolver suas dificuldades procurou um curandeiro e entendeu que deveria procurar uma menina virgem e manter relações sexuais com ela, assim seu problema seria curado e resolvido.

Muito transtornado por se tratar de uma dificuldade da qual pouco se fala, e quase enlouquecendo, as palavras ecoaram como ordem em sua cabeça doente. Peão de uma fazenda vizinha a uma família com quatro filhos, uma delas menina estudiosa, carinhosa, feliz, que gostava de passear de carro com os tios, de andar de bicicleta, de brincar e de ser criança.

Um dia a esperou voltar da escola, pois ia de bicicleta todos os dias e depois pegava o transporte escolar, tentou violentá-la, mas ela se defendeu, visto ser de estatura forte diante do franzino agressor, porém o reconheceu e essa foi sua tragédia derradeira. Não conseguindo seu desejo concretizar e sendo reconhecido a golpeou na cabeça, ainda inconsciente imergiu-a num rio e sobre seu frágil corpo de menina depositou um pedaço de madeira o que a impediu de voltar à vida, vindo a se afogar. Uma morte estúpida ainda em tenra idade.

Ao falar do fato, os olhos dos pais do coração (tios) brilharam pelas lágrimas. Sim, a dor ainda estava lá, límpida, clara e dolorosa, e mesmo depois de muitos anos. Em seus corações a tinham como filha, pois, só tiveram meninos. Havia um lampejo visível de fúria no olhar do homem pela perda inexplicável e as lágrimas de sua mulher simplesmente rolavam por seu rosto as quais me comoveram.

Sua dor naquele momento passou a ser a minha dor.

Como entender a maldade contra a fragilidade de uma menina?

A menina havia feito um pedido para sua tia dias antes de falecer, que em seu aniversário queria um bolo para dividir com seus coleguinhas mais pobres. Ela não pode ver seu desejo se concretizar, mas a mãe e a tia juntas o realizaram. Foram até a escola comemorar os nove anos que completaria com seus colegas e amigos, no sétimo dia de sua morte. Ao rememorar o fato se questiona de onde veio tal força para realizar a comemoração. E a resposta veio da mãe, da certeza que sua filha não voltaria e que era importante manter o desejo bondoso da filha. Os vivos podem fazer coisas pelos mortos já que estes não podem mais fazer por si.

Penso que embora condenável, às vezes, só às vezes, a violência se justifica quando a dor é muito grande, nem todos são tão altruístas e conformados com perdas violentas. O autor do crime fora identificado, contou em detalhes seu crime e morreu na prisão anos depois. Nada se perdeu, porém devo lembrar que não nasceu assassino, mas tornou-se.

Quanto tempo é necessário para superar uma perda e amenizar a dor? Talvez a vida inteira, visto que não era só uma sobrinha deste casal, era muito mais que isso, era a filha que eles não tiveram, era a filha do coração, das emoções, da convivência e do amor que podemos infinitamente sentir uns pelos outros. Eles a amavam, e ela a eles.
Tinham sentimentos, interações que perduram até os dias atuais.

Fernando Henrique Cardoso em seu mais recente livro: A soma e o resto: um olhar sobre a vida aos 80 anos, sabiamente pondera que “os mortos queridos estão vivos dentro da gente. A memória que temos deles é real. Os que foram continuam na minha memória”. Quintana afirmava que “a luz de um morto não se apaga nunca”. Os mortos vivem em nós, em nossas memórias para sempre. E muitas vezes somos governados por eles na maior parte do tempo.

[1] Psicóloga, Terapeuta Comunitária, Professora Universitária, Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF), Doutoranda do programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Assina a coluna Cine Emoção do Conselho Regional de Psicologia 1º região - DF.

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